4.3 O AQUÁRIO GIGANTE E AS MALFADADAS SMS
Telefonara à sua amiga J. para lhe dar conta de quão maravilhoso era estar a ouvir o mar no seu quarto de hotel enquanto escrevia e também porque lhe apetecia dizer-lhe que Z.M. tinha confirmado que vinha amanhã almoçar com ela. Durante a viagem já lhe tinha falado do Z. M, bem como de outros seres masculinos que na última semana tinham entrado na sua vida. Alguns, a maioria, não conhecia ainda pessoalmente e, muito provavelmente, nunca viria a conhecer. Aquele seu “texto de apresentação” que escrevera para o site Adultfriendfinder e que importara agora para o “Clube da Amizade” era de facto um sucesso. Tinha sido inundada de beijos e dedicatórias, mas também de mensagens, o que implica sempre um maior esforço e revela o grau de interesse dos que viram o perfil. Numa semana tinha recebido quase 60 mensagens. Algumas delas eram do Z. M., que ela tinha integrado na sua “lista de favoritos”. Tinham trocado os números de telemóvel e, em cada conversa, ela sentia crescer o interesse e a expectativa dele, um encontro era absolutamente inadiável e seria o começo certo de um romance sério que mudaria a vida dos dois. Era assim que o Z.M. colocava as coisas, antes mesmo de a conhecer. Quando ela lhe disse que ia sair de Lisboa e para onde ia passar uns dias, imediatamente ele retorquiu que isso era providencial pois ele morava ali perto e ia ter com ela. No telefonema seguinte ele confessou-lhe que a distância da sua casa ao sítio para onde ela ia era provavelmente a mesma do que a da casa dela a esse sítio, mas que o que importava era conhecê-la e como tinha a certeza de que o seu encontro ia dar certo, perguntou-lhe se não queria ir com ele, nessa mesma semana, a Salamanca. Isto tudo sem a conhecer.
O P., com quem J. namorou duas semanas, o que é uma duração muito razoável para um relacionamento via net, tinha-lhe telefonado para lhe dizer que tinha comprado um aquário gigante e que a tinha convidado para ir ver o aquário. Desatou a rir, tão incontrolavelmente que J. a acompanhou nas gargalhadas. Aquilo de que J. precisava era de carinho, meiguices, atenção, como o P. soubera tão bem dar-lhe durante aquelas duas semanas, mas precisava também de sexo com o P. ou com outro que preenchesse os requisitos de J., bem mais selectivos, segundo esta, do que os dela. Já tinham discutido a problemática da selectividade e iriam, certamente, continuar a discuti-la. Mas o tópico agora era o aquário. Aconselhou J., no meio das gargalhadas que a sacudiam, a que aceitasse o convite e não perdesse a oportunidade de passar por uma experiência única, por certo irrepetível, a de fazer amor num aquário. P., por enquanto só tinha o contentor de vidro, iria no dia seguinte comprar a flora para o cenário e a fauna que o habitaria. Antes disso, ela devia aproveitar aquele leito tão inusitado e talvez valesse a pena telefonar a P., para que este não se precipitasse nas compras - a comprar alguma coisa imediatamente que se limitasse a comprar areia para compor o leito. Nada de pedras a imitar rochas subaquáticas que inviabilizassem a utilização daquela cama, nem de algas que só serviriam para fazer cócegas. Disse-lhe ainda que estivesse atenta à subida das águas, não fosse o P. accionar algum mecanismo que os levasse a ficar submersos. A risada era imensa, mas quando desligou ficou a pensar no simbolismo de uma morte assim. -----------Rilke. Uma morte transparente????? Pensar nisso
No dia seguinte preparou-se para receber o Z.M. Tinha alguma expectativa, gerada e alimentada pelas elevadas expectativas dele, Chegara-lhe dizer : “ou és tu aquela com quem vou partilhar a minha vida ou não procuro mais ninguém no “Clube”, acabo com isto de vez.” No sms dessa manhã insistia: “ pode ser que hoje seja o primeiro dia de uma grande mudança nas nossas vidas. Tenho muita esperança nisso.” Z.M chegou acompanhado de uma flor – um antúrio – que ela detestava, ou melhor, que não apreciava porque não detestava nenhuma flor, sentia sempre alguma comoção na presença de flores.
Era uma defensora convicta da utilização de flores artificiais, de plástico ou de outros materiais na decoração da casa ou de qualquer outro espaço. Até mesmo de flores secas, gostava especialmente destas, embora sentisse nela um rastro de culpa quando as comprava. As flores eram organismos tão delicados e belos que não deviam ser colhidas, deviam ser todas consideradas espécies em extinção e proibido o seu corte. Quando semeava flores secas pela casa, que ela própria recolhera no campo, na rua, eram flores já mortas, que iriam ter uma sobrevida ao emprestarem um pouco da sua beleza aos espaços onde eram colocadas. Às vezes até acompanhava o envelhecimento e morte desses organismos, como as inflorescência das palmeiras às quais estas cortavam a seiva e morriam sob a copa da matricida. Recolhi-as, limpava-as minuciosamente e às, vezes, pintava-as. Outras vezes eram galhos velhos, mortos há muito tempo, dos quais retirava os últimos vestígios de pele, poeirenta e encarquilhada, distribuindo depois os esqueletos por aqui e por ali em casa. Já lhe tinham dito que esta prática era atentatória das mais elementares regras do feng-shui, ter cadáveres em casa não augurava nada de bom. Quando comprava flores secas não se sentia tão à vontade, pensava sempre que podiam ter sido cortadas em vida só para alimentar a vontade de beleza de gente impaciente, como ela, incapaz de aguardar pela morte natural ou suficientemente indolente para se deslocar aos sítios onde elas habitam e contemplá-las aí em vida.
As flores de plástico eram consideradas pirosas e já muita gente lhe tinha chamado a atenção para o equívoco que constituía a presença desses ersatz na decoração da sua casa. Iria continuar a usar e a abusar das orquídeas de plástico na sua casa.
Em tempos, o seu marido saía por breves espaços de tempo, sempre à noite, e trazia-lhe flores frescas, acabadas de roubar nos quintais da vizinhança ou em jardins públicos. Apreciava a intenção mas manifestava sempre a sua discordância com o gesto carregado de morte que ele trazia para casa.
Voltando ao antúrio do Z.M., pediu ao empregado do hotel que o pusesse numa jarra no seu quarto e sentou-se em frente dele para o ver e para se dar a ver. Era o seu primeiro contacto físico.
Um rosto deste género...
A filha era a sua cruz, a chaga que não parava de sangrar. A filha “ não lhe ligava nenhuma”, e pior do que isso, ele não compreendia porquê. Esta interrogação alimentava todas as suas cogitações, parecia viver para compreender as razões deste agravo. Numa altura em que ele lhe contava como todas as aproximações que tentara tinham sido rechaçadas sem só nem piedade, recebeu um telefonema dos seus pais. Naturalmente perguntava-lhes se estavam bem e quis saber tudo o que estava agendado para a realização das análises médicas que iam fazer, se já estavam marcadas as consultas, quando saberiam os resultados das análises, etc. Quando desligou, Z.M interrogou-se: “O que é que os teus pais terão feito a mais do que eu fiz pela minha filha para tu lhes falares assim?”. E acrescentou:” Como eu seria feliz se a minha filha me falasse assim.”
Tudo quanto ele desejava era viver em paz e arranjar uma ligação permanente, uma companheira a quem ele devotadamente se dedicaria e ela não tinha dúvidas de que ele o faria, como bom homem que era. Ela era a sua última oportunidade, dizia ele.
Z.M. parecia apostado em resolver a sua vida amorosa naquele dia. Partia do princípio de que ela tinha tanta pressa como ele em resolver aquele assunto. Ela afirmava no seu perfil, que ele recordava a toda a hora, que procurava uma relação estável afectivamente e sexualmente, que não se queria casar nem sequer viver em conjunto diariamente, que era independente financeiramente. Ora, ele identificava-se com cada uma daquelas afirmações e o tempo que já passara a teclar com mulheres do “Clube”levavam-no a concluir que, finalmente, tinha encontrado a parceira certa. Logo, enquanto almoçavam, fez questão de a pôr a par do que tinha para lhe oferecer e de como ele imaginava a vida dos dois. Ele tinha toda a disponibilidade do mundo, com excepção dos domingos à tarde e à noite, dedicados ao filho. Ser-lhe-ia absolutamente fiel, e esperava o mesmo dela. A sua vida repartia-se entre a sua quinta ao pé do oceano e o seu monte alentejano. Não tinha muito dinheiro, tinha o suficiente para viver com qualidade e para a sua paixão onerosa: as corridas de touros. Viajava constantemente e, aqui, ela apurou o ouvido mas imediatamente a seguir praguejou para dentro, pois afinal as viagens incessantes do Z.M. correspondiam aos circuitos tauromáquicos, o que significava que ele conhecia a Espanha como a palma da sua mão. Não resistiu e perguntou-lhe se não podia alargar o seu périplo tauromáquico à América do Sul, pelo menos.
Ele viveria nos seus espaços, mas sempre que ela quisesse ele iria a Lisboa ter com ela e ela, nos fins de semana ou sempre que quisesse, seria a senhora da casa. Disse-lhe também que gostava muito que ela conhecesse a casa em que ele estava agora, a que ficava perto do seu hotel.
Ela retorquia vagamente que tinham acabado de se conhecer, que ele estava a ir muito depressa, que uma relação tinha de ser construída, não se oferecia de mão beijada, etc., mas simultaneamente pensava que aquela pressa conduziria também depressa a um desenlace sendo-lhe quase indiferente o tipo de desenlace. Deixou-se envolver pelas carícias de Z.M., beijou-o com entrega, insuflando-lhe a sensação de que estavam a entrar um dentro do outro fazendo apelo à memória do que sentia, quando sob o efeito do haxe, se unia num amplexo com Afonso ou com o Nuno. Os homens com quem tinha estado e aos quais conseguira comunicar aquela sensação, sempre tinham reagido imediatamente desejando-a sexualmente. O mesmo aconteceu com Z.M.
Depois de uma tarde passada à volta de praias e mais praias, por caminhos poeirentos e com frequentes enganos no trajecto, propôs que fossem então conhecer a tal casa. Tinha curiosidade em conhecer um dos espaços em que ela, se quisesse, seria a senhora da casa e tinha curiosidade em saber como seria o sexo com o Z.M.
No percurso para casa do Z.M. recebeu várias chamadas, algumas relativamente inócuas e outras que puseram o Z.M alerta. Quando desligou, ele disse-lhe a sorrir que lhe parecia ter vários concorrentes. Mesmo antes de entrarem em casa, ela viu que tinha uma chamada não atendida de Afonso. Nada no mundo a ia impedir de mandar imediatamente um sms ao Afonso, dando-lhe conta da pena que sentira por não ter ouvido a sua voz. Afonso telefonou-lhe, de imediato, e no olhar dela, tão expressivo como Z.M já tinha sublinhado, ele deve ter visto toda a intimidade que devia existir entre ela e o homem que lhe telefonava.
Depois de ele lhe ter mostrado a casa toda, e de ela ir fazendo exercícios de imaginação sobre como seria viver ali, sentaram-se no sofá, em frente da piscina, beijaram-se longamente e excitaram-se. Foram para a cama e ela sentia que Z.M não se conseguiria controlar por muito tempo, empenhou-se em que o sexo fosse muito bom para ele e ele veio-se demoradamente e abundantemente. Queria continuar a fazer sexo, preparava-se para o estimular novamente, quando o seu telemóvel começou a tocar quase ininterruptamente, uma sequência de chamadas altamente suspeita. Os seus interessados do “Clube”, e não só, a quem ela tinha dito que vinha passar uns dias para aquele sítio, desataram a telefonar-lhe. E alguns reiteravam o desejo de a vir visitar, naquele momento sentia esse desejo como uma ameaça à situação que estava a viver com o Z.M. Quando olhou para o Z.M. percebeu imediatamente que o desenlace já ocorrera. Ele cirandava por ali, já de cuecas vestidas e nos seus olhos infantis havia estupefacção e desesperança. Assomou nela um sentimento de culpa como se tivesse traído a confiança de alguém e disse-lhe isso mesmo. Sentia-se injustiçada por aquele olhar. Que culpa tinha ela que lhe telefonassem? Z.M. apenas lhe disse que percebia que não estavam na mesma fase, ela ainda transportava consigo um leque de possibilidades e a ele só lhe restava uma que parecia ter-se desvanecido também.
Teria sido melhor colocar o telemóvel em silêncio? Perguntou-lhe. Por um lado sim, respondeu-lhe ele, teria sido poupado à confirmação da existência de concorrentes, por outro lado não, sairia menos magoado porque a ilusão não perduraria. Ela calou-se, não teria sabido estruturar uma discordância.
Dois desses telefonemas eram de facto de concorrentes do Z.M., a manifestarem o seu interesse em visitá-la no seu refúgio de férias. De um deles não se lembrava nada, não sabia sequer quem era, tantos tinham sido os homens com quem teclara ou que lhe tinham mandado mensagens nos últimos dias. O outro era Paulo: o pequenino em altura, as outras medidas importantes ainda desconhecia…lol.
Já tinha saído com ele uma vez e tinha sido uma seca. Tinha um rosto agradável à vista mas bastante inexpressivo, correspondia, no perfil, a alguns dos requisitos que privilegiava: formação académica superior, gostava de letras, artes e ciência, não se lembrava se ele tinha respondido ao item da apetência sexual com uma das respostas preestabelecidas: “prefiro não responder”. Era o mais provável.
Tinha acedido a jantar com ele porque na altura não aparecera outro que lhe parecesse mais interessante a convidá-la, mas o pouco que tinham conversado levou-a a antecipar um convívio pouco estimulante, mesmo sonolento. Paulo tinha-lhe enviado uma mensagem, tratando-a por “estimada senhora” -
“Estimada Senhora (preferia escrever o s/ nome pessoal)
“Se acha que os m/ atributos interessam, pois muito agradeço e poderei estar disponivel p/ nos conhecermos melhor.
Podemos começar por este clube e a curto prazo podemos utilizar outros meios (telemóvel, messenger) ou até termos um encontro pessoal.
Gostaria q me falasse de si, do s/ trabalho, expectativas, família, enfim, o que queira.
P.
Um beijo.”
A pequenez em altura devia ter-lhe moldado a personalidade, destilava conhecimentos por todos os poros em relação ao que quer que fosse, desde a matéria em que era formado – algo relacionado com a gestão de sistemas, até aos seus conhecimentos de enologia, de nutrição em geral, matéria sobre a qual perorou bastante quando soube que ela andava a fazer dieta. Exibiu a sua mestria em trinchar o peixe que tinham mandado vir para os dois, pedindo uma faca qualificada para o efeito e chamando a atenção do empregado de mesa para esse facto. Era polido mas entediante, a sua conversa cheirava a azedo, não tinha frescura nem humor. O encontro acabou cordialmente com ele a perguntar-lhe se o encontro era para repetir e ela, mais uma vez, a ser incapaz de dizer não ao mesmo tempo que pensava se devia considerar a possibilidade de, no mínimo, fazer sexo com ele. Paulo era perseverante e nos dias que se seguiram foi mantendo o contacto, através de sms ou teclando com ela sempre que a apanhava online. Estas conversas só vieram confirmar a sua primeira e desfavorável impressão.
Acabou por lhe dizer que ia sair de Lisboa por uns dias e quando o informou do sítio, ele propôs-lhe ir visitá-la, “quando ela achasse adequado”, frase típica de um enfatuado como o Paulo era.
Quando chegou ao seu quarto, depois de Z.M. a ter depositado à porta do hotel, mandou um sms ao Paulo, dizendo-lhe que “sofria de melancolia, talvez causada pelo mar e, ele que desculpasse, mas não ia convidá-lo a visitá-la porque não lhe apetecia ver ninguém”.